quarta-feira, 1 de abril de 2015

MPE – A ação penal e a anulação

Segue abaixo, na íntegra, a ação penal, com a decisão do desembargador João José da Silva Maroja, relator do processo, anulando a denúncia do MPE contra o promotor de Justiça Franklin Lobato Prado, acusado de falsidade ideológica, por falha no processo investigatório, de responsabilidade do procurador de Justiça Ricardo Albuquerque da Silva.

AÇÃO PENAL

PROCESSO N. 2012.3.003379-2 (CNJ 0000241-90.2012.814.0000)
AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARÁ (Procurador de Justiça Ricardo Albuquerque da Silva)
QUERELADO: FRANKLIN LOBATO PRADO (Advogados Mário Barros Neto, Filipe Coutinho da Silveira e outros)
RELATOR: DES. JOÃO JOSÉ DA SILVA MAROJA




EMENTA

AÇÃO PENAL. FALSIDADE IDEOLÓGICA ATRIBUÍDA A PROMOTOR DE JUSTIÇA. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO INVESTIGATÓRIO, COM CONTEÚDO CRIMINAL, INSTAURADO E CONDUZIDO SEM SUPERVISÃO DOTRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ. VIOLAÇÃO À PRERROGATIVA DE FORO ESTABELECIDA PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988.DENÚNCIA REJEITADA. DECISÃO UNÂNIME.
I – A prerrogativa de foro, concedida pela Constituição de 1988 aos titulares de certos cargos e funções públicos, vai além do julgamento por um tribunal, em vez do juízo singular: exige, também, o acompanhamento de todo e qualquer procedimento investigatório sobre matéria criminosa em tese pelo tribunal competente.
II – Por consequência, desde a abertura do procedimento investigatório, deve haver supervisão judicial, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, interpretando o art. 102, I, “b”, da Constituição de 1988; o art. 2º da Lei n. 8.038, de 1990, e seu próprio regimento interno.
III – Embora a regra acima tenha sido concebida em favor dos agentes políticos da República, a Constituição do Estado pode atribuir competência ao respectivo tribunal de justiça para processar e julgar originariamente outras autoridades, o que lhe conferiria, naturalmente, o direito de supervisionar investigações de interesse criminal – a que se chama princípio da simetria. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça.
IV – Na espécie destes autos, o Procurador Geral de Justiça determinou a instauração de procedimento administrativo, concluindo pela existência de um possível delito de falsidade ideológica praticado por promotor de justiça, motivo pelo qual este foi denunciado. Todavia, sendo a investigação integralmente realizada sem qualquer supervisão do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que deveria ter deliberado sobre a instauração daquele procedimento, foi violada a norma constitucional do foro privilegiado, impondo-se o reconhecimento de nulidade da denúncia.
V – Denúncia rejeitada por inobservância de exigências legais e violação a normas constitucionais. Decisão unânime.



ACÓRDÃO

            Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Desembargadores do Tribunal de Justiça do Estadodo Pará, por seu Pleno, sob a presidência da Desembargadora Raimunda do Carmo Gomes Noronha, em conformidade com a ata de julgamento e as notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em rejeitar adenúncia, nos termos do voto do desembargador relator.
            Belém, 19 de setembro de 2012.


Des. João José da Silva Maroja
Relator



RELATÓRIO

            O Ministério Público ofereceu denúncia contra o promotor de justiça Franklin Lobato Prado, imputando-lhe o delito de falsidade ideológica, nos termos do art. 299 e seu parágrafo único do Código Penal (fls. 2/8).
            Alega o denunciante que o requerido “fez inserir declaração falsa e ou diversa da que devia ser escrita em documento, com o fim de criar obrigação e alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, em certame para ascensão na carreira ministerial”. Refere-se a processo para promoção a promotor de justiça da capital, por antiguidade, quando o denunciado teria perdido o prazo de inscrição, tendo-se dirigido ao servidor do protocolo, Bruno Lima Freitas, propondo-lhe que trocasse a etiqueta de seu ofício intempestivo por outra, o que foi recusado.
            O denunciado então teria trocado ele mesmo as etiquetas, com vistas a “ludibriar a Corregedoria Geral de Justiça e o Conselho Superior do Ministério Público no momento da aferição da tempestividade da postulação”. Transcreve trechos da ata da 21ª Sessão Ordinária do Conselho Superior e certidão daquele órgão, nos quais a ação é detalhada e se delibera pela instauração de procedimento investigatório.
            A denúncia está instruída com os autos do procedimento administrativo n. 268/2011-PGJ (fls. 9/87).
            Feito chegado a esta corte, veio a minha relatoria após as declarações de suspeição dos desembargadores Vera Araújo de Souza, Ronaldo Marques Valle e Vânia Fortes Bitar.
            O denunciado ofereceu sua resposta preliminar em extensa peça (fls. 113/142) que aponta a instauração de procedimento administrativo no qual o Procurador Geral de Justiça, em 29.11.2011, “sem autorização ou qualquer supervisão do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Pará, órgão constitucional e legalmente competente para processar e julgar membros do Parquet – empreendeu diligências investigatórias” e por fim delegou poderes ao procurador Ricardo Albuquerque da Silva para “funcionar como órgão de execução naqueles autos”. O secretáriodo Conselho Superior do Ministério Público teria juntado documentos “sem qualquer determinação do PGJ ou doProcurador designado, após o que foi oferecida a denúncia”.
            Aduz que, em 3.11.2011, o denunciado protocolou pedido ao CSMP “admitindo expressa e antecipadamente que havia perdido o prazo para se inscrever naqueles concursos”, afastando qualquer “tentativa de iludir o órgão no que se refere à tempestividade das inscrições”.
            A defesa sustenta violação à prerrogativa de foro do denunciado, porque o PGJ determinou investigação sem autorização deste tribunal, a quem competiria supervisioná-la, caracterizando nulidade absoluta. Invoca doutrina e precedentes dos tribunais superiores para sustentar que o Brasil adota a “interpretação extensiva do texto constitucional no que tange à competência dos tribunais pátrios para preencher lacunas constitucionais”. Afirma que, ao julgar a Petição 3.825-QO, o Supremo Tribunal Federal concluiu que “a supervisão judicial deve ser desempenhada durante toda a tramitação das investigações”. No inquérito Inq-QO 2.411, a tese foi reforçada e complementada com a conclusão de que a abertura de inquéritos originários “depende de pedido do Chefe doMinistério Público da União que deve ser deferido pelo Ministro Relator da Corte”.
            Invoca o princípio da simetria, para sustentar que “a atividade de supervisão judicial exercida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará nos inquéritos originários de sua competência deve abranger todo o procedimento investigatório, desde a sua abertura até o oferecimento ou não da denúncia”, sendo impossível a convalidação dos atos praticados à revelia do tribunal pelo simples recebimento da denúncia.
            Verbera, também, a improcedência da acusação em face de crime impossível, haja vista que “os dois ofícios questionados (...) são documentos acessórios juntados com o pedido, formulado pelo denunciado, de deferimento de suas inscrições extemporâneas de promoção à terceira entrância”. Assim, “o que se tem como falso não são as inscrições nos certames e tampouco o pedido de deferimento de inscrição após o fim do prazo (...), mas um ofício comunicando defeito em equipamento de informática e outro solicitando troca do nº de celular e emaildo denunciado”.
            Estes documentos seriam ineficazes para enganar o órgão ministerial quanto à tempestividade das inscrições do denunciado, não se podendo falar em risco à fé pública ou à instituição Ministério Público; além de se tratar, fosse o caso, de uma fraude grosseira, “a autenticidade dos protocolos seria facilmente verificada, como o foi, pela perfunctória confirmação no sistema de protocolos do órgão”, evidenciando a absoluta ineficácia do meio utilizado. Assim, pela incolumidade do bem jurídico fé pública, não haveria lesividade na conduta, que se confirmaria como atípica.
            Destaca, por fim, que “recentemente, a Sexta Turma do STJ afastou a aplicação do princípio in dubio pro societate, muito utilizado para justificar o recebimento da denúncia, entendendo que tal princípio não possui amparo legal, nem decorre da lógica do sistema processual penal brasileiro, pois a sujeição ao juízo penal, por si só, já representa um gravame”, sendo indispensável a demonstração de justa causa.
            Conclui pedindo a declaração de nulidade absoluta das diligências investigatórias empreendidas pela PGJ sem supervisão deste tribunal, com a consequente extinção do processo sem julgamento do mérito e, alternativamente, a improcedência da denúncia, pelo reconhecimento do crime impossível.
            Não apresentado nenhum documento com a resposta, descabe nova manifestação do Ministério Público, ficando o feito pronto para o julgamento de admissibilidade.
            É o relatório.

VOTO

Versam os autos sobre ato do promotor de justiça Franklin Lobato Prado, que trocou as etiquetas de ofícios administrativos protocolados junto ao Ministério Público, alegadamente com o intuito de ludibriar a administração quanto à intempestividade do seu requerimento de inscrição para promoção de cargos pelo critério de antiguidade.
O defendente não nega a troca de etiquetas, limitando-se a minimizar o fato por meio da afirmação de que não seria possível enganar o Conselho Superior do Ministério Público ou lesionar a fé pública, pois a intempestividade de seu pedido já seria conhecida àquela altura.
Alega, como “questão de ordem pública preliminar”, que teve violada a sua prerrogativa de foro, o que ensejaria a nulidade da investigação e da denúncia. O motivo seria o fato de ter sido determinada, pelo procurador geral de justiça, instauração de investigação sobre fato criminoso em tese, sem autorização e supervisãodo Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
Já foi definido pelo Supremo Tribunal Federal que as prerrogativas de função expressas na Constituição da República conduzem não somente ao julgamento do feito por um tribunal competente – em vez do juízo singular –, mas, também, para ao acompanhamento pela corte, em todas as suas fases, inclusive no que tange ao procedimento investigatório.
Nesse sentido, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, no voto vencedor proferido no julgamento da Petição 3.825-QG, pronunciou-se dizendo:
Questão de ordem em Petição. (...) Ocorrência de indiciamento de Senador da República por ato de Delegado da Polícia Federal pela suposta prática do crime do art. 350 da Lei nº 4.737/1965 (Falsidade ideológica para fins eleitorais). 3. O Ministério público Federal (MPF) suscitou a absoluta ilegalidade doato da autoridade policial que, por ocasião da abertura das investigações policiais, instaurou o inquérito e, sem a prévia manifestação do Parquet, procedeu ao indiciamento do Senador (...). Segundo o Ministro Relator Originário, Sepúlveda Pertence, o pedido de arquivamento do inquérito, solicitado pelo Procurador-Geral da República, com relação ao Senador, seria irrecusável pelo Tribunal, porque, na linha da jurisprudência consolidada do STF, o juízo do Parquet estaria fundado na inexistência de elementos informativos que pudessem alicerçar a denúncia. (...) Com relação ao pedido de anulação do indiciamentodo Senador por alegada ausência de competência da autoridade policial para determiná-lo, o Min. Sepúlveda asseverou: i) a instauração de inquérito policial para a apuração de fato em que se vislumbre a possibilidade de envolvimento de titular de prerrogativa de foro do STF não depende de iniciativa doProcurador-Geral da República, nem o mero indiciamento formal reclama prévia decisão de um Ministro doSTF; ii) tanto a abertura das investigações de qualquer fato delituoso, quanto, no curso delas, o indiciamento formal, são atos da autoridade que preside o inquérito; e iii) a prerrogativa de foro do autor dofato delituoso é critério atinente, de modo exclusivo, à determinação da competência jurisdicional origináriado Tribunal respectivo, quando do oferecimento da denúncia ou, eventualmente, antes dela, se se fizer necessária diligência sujeita à prévia autorização judicial. Voto pelo indeferimento do pedido de anulaçãodo indiciamento do Senador investigado por entender como válida a portaria policial que instaurou o procedimento persecutório. (...) O voto do Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, abriu divergência doRelator para apreciar se caberia, ou não, à autoridade policial investigar e indiciar autoridade dotada de predicamento de foro perante o STF. Considerações doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema da instauração de inquéritos em geral e dos inquéritos originários de competência do STF: i) a jurisprudênciado STF é pacífica no sentido de que, nos inquéritos policiais em geral, não cabe a juiz ou a Tribunal investigar, de ofício, o titular de prerrogativa de foro; ii) qualquer pessoa que, na condição exclusiva de cidadão, apresente “notitia criminis”, diretamente a este Tribunal é parte manifestamente ilegítima para a formulação de pedido de recebimento de denúncia para a apuração de a Tribunal investigar, de ofício, o titular de prerrogativa de foro; ii) qualquer pessoa que, na condição exclusiva de cidadão, apresente “notitia criminis”, diretamente a este Tribunal é parte manifestamente ilegítima para a formulação de pedido de recebimento de denúncia para a apuração de crimes de ação penal pública incondicionada. (...) iii) diferenças entre a regra geral, o inquérito policial disciplinado no Código de Processo Penal e o inquérito originário de competência do STF regido pelo art. 102, I, b, da CF e pelo RI/STF. A prerrogativa de foro é uma garantia voltada não exatamente para os interesses do titulares de cargos relevantes, mas, sobretudo, para a própria regularidade das instituições em razão das atividades funcionais por eles desempenhadas. Se a Constituição estabelece que os agentes políticos respondem, por crime comum, perante o STF (CF, art. 102, I, b), não há razão constitucional plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial do STFA iniciativa do procedimento investigatório deve ser confiada ao MPF contando com a supervisão do Ministro-Relator do STF. 10. A Polícia Federal não está autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República (no caso do STF). No exercício de competência penal originária do STF (CF, art. 102, I, “b” c/c Lei nº 8.038/1990, art. 2º e RI/STF, arts. 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelodominus litis. 11. Segunda Questão de Ordem resolvida no sentido de anular o ato formal de indiciamento promovido pela autoridade policial em face do parlamentar investigado. (...)” (STF, Pleno – PET 3825 – rel. Min. Sepúlveda Pertence – relator p/ acórdão Min. Gilmar Mendes – j. 10.10.2007 – DJ 4.4.2008)

            Tal entendimento é pertinente, visto que a prerrogativa de função não é, na verdade, um privilégio concedido à pessoa que exerce determinado cargo, mas uma forma de assegurar, no interesse da sociedade, que estas pessoas, quando necessário, também estejam sujeitas a um procedimento legal e justo.
            Passo a examinar se o entendimento esposado pela corte suprema se aplicaria, também, em âmbito estadual, na medida em que as prerrogativas de função dos membros do Ministério Público estadual encontram-se previstas na Constituição do Estado do Pará e não na da República. Trata-se do princípio da simetria, invocado pelo denunciado.
            O Superior Tribunal de Justiça se posicionou no sentido de reconhecer as prerrogativas de função previstas nas constituições estaduais, conforme o aludido princípio. Aponto precedentes:
“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. VEREADOR. COMPETÊNCIA PORPRERROGATIVA DE FUNÇAO. FORO PRIVILEGIADO ESTABELECIDO PELA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. POSSIBILIDADE DIANTE DA SIMETRIA ENTRE CARGOS NAS ESFERAS MUNICIPAL, ESTADUAL E FEDERAL. ORDEM CONCEDIDA. (...) Assim sendo, por opção de natureza política que comporta juízo discricionário do constituinte matéria infensa a exame pelo Judiciário, a Constituição estadual pode atribuir competência ao respectivo tribunal de justiça para processar e julgar, originariamente, vereador, por ser agente político, ocupante de cargo eletivo, integrante do Legislativo municipal, o qual encontra simetria com os cargos de deputados estaduais, federais e senadores, sendo que estes, por força do disposto na própria Constituição Federal (art. 102, inc. I, letra b), têm foro por prerrogativa de função perante o Supremo Tribunal Federal, e aqueles perante os respectivos tribunais de justiça, conforme Cartas estaduais, tendo em vista, inclusive, a regra que se contém no art. 25, parte final, da Carta da República.” (STJ, 5ª Turma – HC 40.388/RJ – rel. Min. Gilson Dipp – j. 13.9.2005 – DJ 10.10.2005)

Analisada a Constituição do Estado do Pará, temos que, em seu art. 161, I, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional n. 50, de 2011, foi estabelecida para este tribunal a competência de processar e julgar, originariamente, os membros do Ministério Público, dentre outras autoridades, nos crimes comuns e de responsabilidade.
Reconhecendo o princípio da simetria, na medida em que os membros do Ministério Público respondem por seus eventuais crimes originariamente perante esta corte, tem-se por consequência que tal prerrogativa deve ser respeitada em sua integralidade. Ou seja, não diz respeito somente ao julgamento da ação penal propriamente, mas, segundo o entendimento do STF, antes esposado, a todas as atividades de cunho persecutório, o que inclui as investigações preliminares.
Diante disto, entendo que, no presente caso, haveria a necessidade de requerimento a este tribunal para que fosse instaurado inquérito, a fim de investigar o promotor de justiça, devendo a corte decidir pela sua abertura e, concomitantemente às investigações, efetuar sua supervisão. Está evidente nos autos que tal providência não foi tomada, motivo pelo qual acolho a preliminar e, em consequência, rejeito a denúncia, destacando todavia que nada obsta eventual denúncia futura, se for esse o entendimento do dominus litis e desde que respeitadas as regras legais.
É como voto.
Belém, 19 de setembro de 2012.


Des. João José da Silva Maroja
Relator


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