segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

MPE – A ação por prevaricação

Abaixo, a petição inicial da ação criminal na qual é réu o ex-procurador-geral de Justiça Marcos Antônio Ferreira das Neves, acusado de prevaricação, por valer-se de PMs lotados no Gabinete Militar do Ministério Público Estadual para fazer a segurança de duas de suas empresas, assim como da sua mulher, Lauricéia Barros Ayres.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR DESEMBARGADOR MAIRTON MARQUES CARNEIRO


“Ref. Processo nº 0001061-02.2018.8.14.0000


 “O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARÁ, por intermédio do seu Procurador Geral de Justiça, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, em especial às previstas no art. 129, inciso I, c/c o art. 29, inciso X, da CF/88, arts. 84 e 87 do Código de Processo Penal e no art. 1º da Lei nº 8.038/90, e com espeque no procedimento investigatório criminal nº 0001061-02.2018.8.14.0000 (em anexo), oferecer denúncia para instauração de

AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA

em desfavor de MARCOS ANTÔNIO FERREIRA DAS NEVES, brasileiro, paraense membro do Ministério Público do Estado do Pará, convivente, nascido em 06/06/1959, RG 3955539-PA, CPF 089.177.102-63, residente à Av. Apinagés, nº 944, ap. 201, bairro Batista Campos, CEP 66.033-170, podendo também ser encontrado no prédio anexo II do Ministério Público, 2º andar, sito à Rua Ângelo Custódio, n° 36, CEP 66.015-160; pelos fundamentos de fato e de direito a seguir expostos:

I – DOS FATOS.

“Consta dos inclusos autos de procedimento investigatório criminal que, em 06 de abril de 2017, aproximadamente às 11:00 horas, no estabelecimento comercial denominado  Posto Rota 391, localizado na Rodovia Augusto Meira Filho, KM 13, localidade de Pau D’arco, município de Santa Bárbara, policiais federais lotados na Delegacia de Controle de Segurança Privada do Departamento de Polícia federal (DELESP/SR/DPF/PA), em regular serviço de fiscalização de atividades de segurança privada, flagraram os policiais militares NELSON EDIVAL BRAGA CASTRO e RAIMUNDO ROSÁRIO DA SILVA ATAÍDE, realizando a vigília e segurança do respectivo estabelecimento comercial.
“Conforme relatório de diligência (fls. 27/31) elaborado pela APG ANDRÉIA HÖRBE, incialmente, logo ao serem abordados, os policiais militares alegaram que estavam fazendo ‘bico’ de segurança do posto de gasolina. Logo em seguida, disseram que estavam à serviço do Ministério Público do Estado, fazendo a segurança pessoal da dona do estabelecimento comercial, senhora LAURICÉIA BARROS AYRES, que seria esposa do Procurador-Geral de Justiça MARCOS ANTONIO FERREIRA DAS NEVES.
“Ainda segundo o referido relatório, quando os policiais federais chegaram ao posto de gasolina, observaram a presença dos veículos Toyota Hilux placa JVK-7737 (propriedade do denunciado) e HB-20 placa QES-1300 (locado pelo Ministério Público), estacionados “em local estratégico, com posição frontal para o posto de gasolina, indicando possível estado de vigilância". Ao lado dos veículos estavam os dois policiais militares.
“Relata ainda que abordaram a frentista MARIELLY e indagaram da segurança do posto, quando esta “afirmou que a proteção era realizada pelos homens encontrados no local com o auxílio dos dois carros”.
“Os policiais lavraram o competente “Auto de Encerramento da Execução Não Autorizada das Atividades de Segurança Privada”, gerando, como consequência, a instauração de processo administrativo para apurar possível ocorrência de execução clandestina de segurança privada.
“Após o devido processo legal e diante da ausência de defesa, o delegado chefe da DELESP/SR/DPF/PA, concluiu pela procedência da autuação e encerramento da atividade ilícita.
“O procedimento foi remetido à Procuradoria da República no Pará e, por sua vez, o Exmº. Sr. Procurador Chefe da Procuradoria Regional da República, Dr. ALAN ROGÉRIO MANSUR SILVA, através do Ofício nº 7268/2017/GABPC/PRPA, encaminhou as peças de informação à Procuradoria-Geral de Justiça, em face de tratar de ‘possíveis irregularidades cometidas por ex-Procurador-Geral de Justiça do Estado do Pará’.
“Dado o posicionamento reinante à época no Tribunal de Justiça do Pará, o Ministério Público requereu autorização para investigar agente público com foro por prerrogativa de função, recebendo deferimento.
“Instaurado o procedimento investigatório criminal, foram ouvidos NELSON ODIVAL BRAGA CASTRO, RAIMUNDO ROSÁRIO DA SILVA ATAÍDE, CLEBER JOÃO GAIA SANTOS e CARMEN BURLE DA MOTA.
“O CB-PM NELSON ODIVAL BRAGA CASTRO declarou que fazia a ‘segurança VIP’ da família do denunciado, esclarecendo que não havia escala para o serviço. Disse que trabalhava com o CB GAIA e que costumava se deslocar para a residência do PGJ em seu próprio automóvel e lá assumia um dos carros da família. Afirmou que o CAB RAIMUNDO também chegou a fazer o serviço, por três ou quatro meses. Informou que na data que foi abordado por uma operação da Polícia Federal, havia pedido reforço do policiamento do Ministério Público, visto que ouvira boatos de que estavam ocorrendo assaltos em Santa Bárbara. Asseverou que algumas vezes recebeu ordens da esposa (LAURA ou LAURICÉLIA) do denunciado para fazer deslocamentos sem que ela estivesse acompanhando e que dava apoio de segurança no transporte de dinheiro da casa lotérica. Referiu que o próprio denunciado frequentava as empresas e nos últimos meses até dormia no posto. Esclareceu que havia recebido ordens do CEL CARNEIRO, chefe da segurança do Ministério Público, para cumprir todas as ordens da esposa do denunciado. Reconheceu que mentira aos policiais federais quando disse que estava fazendo ‘bico’ particular no posto de gasolina.
“O CB-PM RAIMUNDO ROSÁRIO DA SILVA ATAÍDE declarou que estava no posto de gasolina do denunciado quando a Polícia Federal fez a abordagem no local. Esclareceu que no primeiro momento informou à Polícia Federal que estava fazendo ‘bico’ no posto, o que não era verdade. Disse que naquele dia estava fazendo segurança do PGJ, mas recebeu ordens para dar apoio na segurança das empresas do denunciado, posto que havia notícia de que sofreriam um assalto. Afirmou que algumas vezes recebeu ordens do PGJ para levar documentos pessoais nas suas empresas. Asseverou que o denunciado costumava se deslocar com frequência até suas empresas (posto de gasolina, plantação de açaí  e lotérica) e até ficava dormindo no local. Informou que as empresas não possuíam segurança particular e que a segurança era realizada pelos policiais. Acrescentou que mesmo quando estava trabalhando na segurança do PGJ, foi acionado para se deslocar até Santa Bárbara. Declarou que algumas vezes acompanhou funcionários das empresas em transporte de dinheiro. Apontou que nos últimos três meses da administração do denunciado, passou a fazer segurança noturna das empresas, logo após sair do serviço na sede do MP, deslocando-se até Santa Bárbara no carro oficial do Ministério Público. Informou que durante o dia, quem ficava sozinho no local era o CB NELSON. Afirmou que o denunciado MARCOS DAS NEVES sabia que os policiais militares faziam a segurança de suas empresas.
“O CB-PM CLEBER JOÃO GAIA SANTOS declarou que trabalhou quatro anos no Ministério Público, coincidindo com o período em que o denunciado foi Procurador-Geral de Justiça. Após um ano fazendo a segurança dos prédios do Ministério Público, foi designado para fazer a ‘segurança aproximada’ dos familiares do denunciado, especialmente de sua esposa. Disse que conduzia veículos particulares da família, principalmente uma camionete Hilux, levando a esposa do Procurador-Geral até as empresas da família, localizadas no Município de Santa Bárbara. Reconheceu que algumas vezes era determinado o deslocamento até Santa Bárbara, sem acompanhar a esposa do denunciado, para ‘buscar algo ou levar algo’ (textuais). Esclareceu que dois policiais militares se alternavam na tarefa, revezando dois por dois dias. Afirmou que compartilhava as atividades com o CB PM NELSON e, durante as férias deste, com o CB PM RAIMUNDO. Destacou que RAIMUNDO costumava fazer a ‘segurança aproximada’ do Procurador-Geral MARCOS DAS NEVES e que este ‘se deslocava com muita frequência’ às empresas, inclusive chegava a dormir nas instalações do Posto de Gasolina.
“Por último, foi inquirida a Promotora de Justiça CARMEN BURLE DA MOTA que em conversa informal com o presidente do PIC, acabou por comentar que teve a sua segurança pessoal suprimida pela Procuradoria-Geral de Justiça na mesma época. Disse a Promotora que em 2012 recebeu ameaças em função de sua atuação na fiscalização eleitoral, razão pela qual recebeu proteção pessoal por determinação do Procurador-Geral de Justiça EDUARDO BARLETA. Afirmou que um dos policiais que fazia sua segurança era NELSON (CB-PM NELSON ODIVAL BRAGA CASTRO). Esclareceu que tirou licença e férias e ao retornar soube pelo CB-PM NELSON que este não mais estaria à disposição de sua segurança, porque estaria trabalhando para a mulher do Procurador-Geral MARCOS DAS NEVES, bem como ‘para um posto e uma lotérica que tem no pau d’arco’ (textuais). Informou que o policial pediu para voltar a trabalhar com a Promotora de Justiça, posto que ‘não tinha mais condições de ir para a faculdade’, já que ficava ‘o dia inteiro à disposição’. Declarou que conversou com o Procurador-Geral MARCOS DAS NEVES para manter sua proteção pessoal, mas teve negado o pedido. Disse que diante da falta de segurança, pediu afastamento dos processos eleitorais. Meses depois encontrou o CB NELSON, em 2014, numa clínica veterinária e este disse que tinha largado a faculdade em função das atividades que lhe foram confiadas na segurança da esposa do PGJ e das empresas.
“Em que pese a prestadora de serviço VIVO não ter encaminhado ainda as informações determinadas por ordem judicial, algumas conclusões já puderam ser extraídas da medida de quebra de dados telefônicos. Entre os dias 31/01/2017 e 25/03/2017, o policial militar NELSON EDIVAL BRAGA CASTRO efetuou pelo menos cinco ligações quando estava na Rodovia Augusto Meira, local onde estão a lotérica e o posto de gasolina. Estas ligações ocorreram nas seguintes datas e horários: 31/01/2017, às 21:24 horas; 04/03/2017 (sábado), às 23:49 horas; 07/03/2017, às 20:44 horas; 09/03/2017, às 01:39 horas; 25/03/2017 (sábado), às 21:24 horas. Observa-se então que o policial prestava serviço no posto e na lotérica, altas horas da noite, de madrugada e nos finais de semana, corroborando com o depoimento prestado pela Promotora de Justiça CARMEN BURLE DA MOTA.
“É importante destacar que, para ocultar a conduta ilícita, não havia no gabinete militar do Ministério Público ‘escala de serviços’, conforme é disposto no artigo 184 do Regimento Interno e dos Serviços Gerais do Exército, adotado pela polícia militar. Tal circunstância agrava a conduta e explicita o dolo e a má-fé do agente.
“A Resolução nº 156-CNMP, de 13 dezembro de 2016, regulamenta o sistema de segurança institucional do Ministério Público, admitindo que a segurança de familiares de membros do Ministério Público seja realizada por servidores ou policiais, ‘em face dos riscos concretos ou potenciais, decorrentes das funções institucionais’. Já a segurança de material abrange tão somente os bens móveis e imóveis do Ministério Público.
“O que se observa nos presentes autos é que a segurança da esposa do denunciado era realizada sem qualquer justificativa específica e ainda se estendia ao patrimônio do casal, incluindo empresas comerciais. Tal situação não é acobertada por qualquer norma legal ou infra-legal que regulamente a atuação do Ministério Público.
À título de exemplo, registra-se que, segundo informação do site comprasnet, o valor unitário mensal de um vigilante armado, turno 12x36, diurno está em torno de R$ 4.000,00 (quatro mil reais). A manutenção de dois policiais armados em regime permanente, pode significar um ganho anual para as atividades empresariais da família do denunciado de mais de cem mil reais por ano.

II – DO DIREITO.

“A conduta descrita nesta peça inaugural demonstra a prática de crime de prevaricação, previsto no artigo 319 do Código Penal, com as qualificadoras do §2º, do art. 327, e art. 71, todos do Código Penal, verbis:

“Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

Art. 327 – (...)
§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público. (Incluído pela Lei nº 6.799, de 1980)

Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. 

Conforme leciona o Promotor de Justiça Cleber Masson[1]:

“Prevaricação é a infidelidade ao dever de ofício, à função exercida. É o não cumprimento pelo funcionário público das obrigações que lhe são inerentes, em razão de ser guiado por interesses ou sentimentos próprios. Nosso Código Penal compreende a omissão de ato funcional, o retardamento e a prática, sempre contrários à disposição legal.
“O funcionário público, utilizando seu cargo para a busca da satisfação de interesse ou sentimento pessoal, afronta um dos mais importantes valores do nosso estado democrático de Direito, consistente no princípio da impessoalidade (CF, art. 37, caput), cujo conteúdo ‘significa basicamente que o agente de governo, no exercício de sua função, deve mover-se por padrões objetivos, e não por interesses ou inclinações particulares, próprias ou alheias.”

“De fato, ao determinar que policiais militares a serviço do Ministério Público realizassem atividade de segurança privada de suas empresas, para satisfazer seu interesse econômico (receber segurança gratuita para seu patrimônio), a conduta se adequa perfeitamente à moldura legal. Tal conduta, mais do que violar disposição legal, contraria os mais basilares princípios da administração pública.
“A conduta se mostra ainda mais grave quando se demonstra que foi retirada a segurança de um membro do Ministério Público ameaçado para atender os interesses particulares do próprio chefe da instituição.
“Como Procurador-Geral de Justiça, o denunciado exercia, à época do delito, função de máxima direção de um órgão autônomo da administração direta, fazendo incidir a qualificadora do art. 327, §2°.
Por fim, os autos demonstram que o mesmo delito veio se repetindo ao longo de três ou quatro anos, com similitude de tempo, lugar e maneira de execução.

III – DO PEDIDO.

“Ante o exposto e fundamentado, o Ministério Público do Estado do Pará REQUER que a presente ação penal originária seja recebida, nos termos do art. 6º da Lei nº 8.038/90, e, ao final, haja a condenação de MARCOS ANTONIO FERREIRA DAS NEVES por violação ao tipo penal descrito no artigo 319 do Código Penal, com a qualificadora do §2º, do art. 327, e a causa de aumento de pena prevista no art. 71, todos do Código Penal.
“Nesta oportunidade, o Parquet solicita a juntada da certidão de antecedentes do réu
“Por fim, considerando que ao denunciado foi imputada a prática de delito em que a pena mínima cominada é inferior a um ano, fazendo, em tese, incidir as disposições do artigo 89 da Lei 9.099/95 (suspensão condicional do processo), o Representante do Ministério Público requer designação de audiência preliminar a fim de que o autor se manifeste sobre a presente proposta de SURSIS PROCESSUAL pelo período de dois anos formulada nos seguintes termos:
“Reparação do dano, devolvendo aos cofres do Ministério Público e da Polícia Militar do Estado do Pará a quantia de R$ 100.000,00 (cem mil reais), em partes iguais, como indenização estimada pelos serviços particulares prestados pelos policiais remunerados pelo dinheiro público;
“Proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;
“Comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.
“Caso aceitas as condições, requer sejam encaminhados os autos para o MP ao final do período.
“Pugna-se, também, provar o alegado por todos os meios de prova em direito.

“Termos em que,
“Pede deferimento.
“Belém (PA), 05 de novembro de 2018.

“GILBERTO VALENTE MARTINS
“Procurador-Geral de Justiça

“TESTEMUNHAS:

“NELSON ODIVAL BRAGA CASTRO, Policial Militar a ser requisitado do Comando-Geral da PM, nos termos do art. 358 do CPP.
“RAIMUNDO ROSÁRIO DA SILVA ATAÍDE, Policial Militar a ser requisitado do Comando-Geral da PM, nos termos do art. 358 do CPP.
“CLEBER JOÃO GAIA SANTOS, Policial Militar a ser requisitado do Comando-Geral da PM, nos termos do art. 358 do CPP.
“CARMEN BURLE DA MOTA, Promotora de Justiça, com domicílio oficial na sede da Promotoria de Justiça de Castanhal, sito à Av. Getúlio Vargas, 2638.
“ANDRÉIA HÖRBE DOS SANTOS, agente da polícia federal, com domicílio oficial na DCSP, sito à Rua dos Caripunas, 3554, bairro do Guamá, Belém-PA, CEP 66.063-040.”



[1] Direito Penal, volume 3, Parte Especial, editora GEN-Método, São Paulo, 2018, p. 750/751. 

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