Segue
abaixo a transcrição, na íntegra, da crítica de Nei Leandro de Castro (na charge):
Cobra Norato de águas turvas*
Em
sua correspondência com Manuel Bandeira, Mário de Andrade explica que uma das
intenções do episódio “Carta pras Icamiabas” era mexer com o pedantismo de
alguns brasileiros letrados. A lembrança vem a propósito desse O Remo Mágico, do paraense João de
Jesus Paes Loureiro, que rescende a pedantismo e a pretensão, a partir de suas
palavras de apresentação do livro: “Estes poemas nasceram como afluente de um
trabalho central de poesia, onde pretendo, em forma cíclica, manifestar minha
visão do mundo, através de um sentido de mundamazonividência, representativa do
que desejo realizar, poesia-vida-vida, fluindo ao longo da história da existência”.
Depois
dessa amostra de estilo caudaloso, se o leitor tiver coragem de ir adiante, vai
encontrar pela frente dois temas amazônicos (Cobra Norato e Romance das
Icamiabas), tratados em setessílabos, numa enxurrada de empáfia (“Aqui, começo
cantando/como riomar que corre”), lugares-comuns (“O Cobranorato passa/pelo rio
buscando o mar. E passa em ondas, escamas/nos tempos do verbo amar”). E
empréstimos de leituras mal-digeridas pelo autor, tantas que se tornaria ocioso
citar algumas delas. Num estudo mais apurado – que, de resto, a produção de
João de Jesus não faz por merecer – poderíamos apontar todas as “influências”
por que passou o poeta paraense, desde o seu primeiro livro, Tarefa, publicado em 1964.
Ler
seus livros é tropeçar, a cada página, em pastiches de Maiacovski, Whitman,
Neruda, Lorca, etc., etc., cometidos de acordo com a sua leitura mais recente.
E tudo leva a crer que o autor usa dolosamente as suas fontes, a julgar pela
apropriação desta quadra de João Rodrigues de Castelo Branco.
Senhora, parte tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhum por ninguém.
A
conhecida Cantiga, sem merecer qualquer referência, é mote e glosa da “Cantiga
de amar, de amor e de paz” (o segundo livro de João de Jesus, 1966), que abre
com este primor de imitação:
Estou mui triste, Senhora
mui triste de ser tão triste,
que certo sempre não existe
alguém tão como eu agora.
Como
o leitor pode observar, o original é melhor, mais novo, apesar de escrito há
cerca de quinhentos anos. No mais, sempre que confrontado com suas fontes de
inspiração, João de Jesus só tem a perder. Garcia Lorca, uma das “influências”
mais caras ao autor de O Remo Mágico, está presente na maioria dos seus versos
em setessílabo. Dos campos de Andaluzia para os rios amazônicos, claro que esse
insólito transplante tinha que sofrer todas as rejeições naturais.
Em
Cobra Norato, versão paraense, não se pode dizer que houve incursões nas idéias
de Raul Bopp. Aqui, João de Jesus teve a pretensão de retomar um tema usado em
1928, cheio daquelas conquistas formais dos modernistas, para diluí-lo sem o
menor grau de inventiva.
Por
este exemplo e por muitos outros, é triste constatar, na poesia brasileira de
hoje, que a herança do Modernismo está sendo dilapidada sem o menor escrúpulo.
Raul Bopp, ao lado deste novo cantador de Cobra Norato, é um poeta vivo,
novíssimo, que impulsiona a nossa linguagem poética. João de Jesus Paes
Loureiro, a despeito de se intitular um audaz navegante manobrando um remo
mágico, dá-nos a impressão de estar à margem de um igarapé, exausto, sem
fôlego, recorrendo ao oxigênio das mais malbaratadas influências. Seria isso a
tal de mundamazonividência?
Da
editora que cuidou muito bem da apresentação gráfica de O Remo Mágico seria
ótimo que tivéssemos uma promessa de divulgação de outros poetas paraenses
pouco conhecidos por aqui, entre os quais se destaca Ruy Barata, este, sim, um
poeta que se nivela à força criativa de Mário Faustino.
Nei
Leandro de Castro
Poeta, crítico e
jornalista
* O
Globo, edição de 4 de abril de 1976, domingo.
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