Com um quê de irreverência e ironia,
intitula-se “O canto do urubu” o manifesto de lançamento do Outros
400, disponibilizado na página do portal e abaixo transcrito:
O CANTO DO URUBU
Modernizar o passado é uma evolução musical
Chico Science
A CIDADE
É um balé,
um bando de famintos. São sobreviventes de asas negras pairando sobre as
feiras. Sobre as ruas. Sobre os canais. O Coragyps atratus, o
urubu-de-cabeça-preta, segue sua busca diária por comida com os olhos atentos
entre os becos e absurdos de Belém do Pará. Não conhece nem o nome nem as
farsas que sobre ela os homens contam. O que sabe é o que vê a quase três mil
metros de distância. O que sabe são os cheiros pescados por seu faro apurado.
Desliza nos ventos, quase boia, como crianças em igarapés. E de lá viu e vê
histórias.
De lá pôde
ver comandantes europeus amarrando indígenas em bocas de canhões, tal como vê
os homens de farda de hoje ameaçando a periferia e exigindo propinas de
pequenos comerciantes. De lá viu abrirem-se grandes avenidas e serem expulsas
famílias inteiras para as margens, tal como vê agora as mulheres esgueirando-se
na calçada por medo de assédio e violência. Ainda.
Ele paira e
sente a certeza da insegurança dos que vão lá embaixo. Observa calmamente. E,
embora não tenha órgão vocal, crocita, solta barulhos estranhos. Algo
semelhante a um grito. Talvez um novo tipo de canto. De esperança?
A INFORMAÇÃO
O ano em que
chegamos ao quarto centenário de Belém não pode tornar-se uma vitrine para que,
mais uma vez, uma história de genocídios e exclusão social seja escondida e
naturalizada. Ou pior: convertida em algo merecedor de louvores, sendo assim
também ocultadora da situação real de nosso presente.
Torna-se
inaceitável que desconheçamos, por exemplo, quem foram os representantes da
dominação europeia que hoje dão nome à comendas entregues pela Prefeitura
Municipal. Que aceitemos a alcunha de “cidade morena”, sem questionarmos o
quanto de preconceito e discriminação à mulher negra amazônica ela carrega. É
inadmissível que recebamos calados notícias que tratam com louros e confetes a
trajetória de políticos e padres que foram representantes máximos da ditadura
militar no Estado do Pará, tendo em vista o papel desempenhado pelo regime.
Qualquer discurso alinhado com este comportamento deve ser exposto com clareza.
E discutido.
Junto à
visão dos urubus devemos alinhar nosso olhar. Compreender o porquê de alguns
receberem a carcaça no chão e, outros, o prato com o filé. Buscar as narrativas
dos passos nas vias sem asfalto, nos portos sem condição de trabalho, nas vilas
onde ainda é uma realidade sentar-se à porta de casa e observar a vida, mesmo
com receio. É preciso apurar os sentidos. Distinguir o que para uns é canto e
para outros é grito. O que para uns, grafite, para outros, pixo. Olhar de
frente para o futuro, para o presente e para passado.
OUTROS
PORTAIS
É urgente,
portanto, a criação e fortalecimento de novos espaços de crítica e discussão.
Locais de produção de comunicação que não se furtem à experimentação e ao
posicionamento de ideias. E que sejam capazes de receber de asas abertas o
contraditório, sempre primando pelo debate franco e respeitoso. Nos últimos
anos, Belém vem dando cria e vazão a uma série de iniciativas e movimentos
que chamam para si a necessidade de construção de uma outra cidade.
Acreditamos que estes voos devem ser estimulados e multiplicados. Em nome de
uma cidade onde os solares recebam a luz do sol, e não a poeira do descaso.
Onde as chacinas não sejam tragédias anunciadas para a maioria da população. Um
lugar onde outra história imponha sua força com eficácia e seriedade. E logo.
#Outros400.
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