Gaspari: notícia, prioridade que se sobrepõe aos poderes da hora. |
De Elio Gaspari, na sua coluna desta quarta-feira,
13, na Folha de S. Paulo, sobre os
percalços no exercício do jornalismo:
De ed.kennedy@edu para todo mundo
13/05/2015 02h00
Meu nome é
Edward Kennedy, nada a ver com o xará irmão do presidente americano, que foi
senador e veio para cá em 2009. Falou-se dos 70 anos do fim da Segunda Guerra e
novamente fiquei esquecido. Todo jornalista que lida com notícia deve se
lembrar que fritaram Ed Kennedy.
Em maio de
1945 eu era o chefe do escritório da agência de notícias Associated Press na
frente ocidental da Segunda Guerra. Estava baseado em Paris, era um gato e
bebia tudo com Ernest Hemingway. Na manhã do dia 6, um domingo, fui chamado
pelo comando militar americano para embarcar num avião militar. Éramos
dezessete. Não sabíamos para onde íamos, nem para fazer o quê. Ao desembarcar
na cidade de Reims, onde estava do QG do general Dwight Eisenhower, entendemos
tudo. O mundo já sabia que Hitler estava morto, que os russos já haviam entrado
em Berlim. Era a rendição do Reich.
Fomos
informados de que o que acontecesse ali deveria ser mantido em segredo. Logo
depois chegou o general Gustav Jodl, chefe do Estado Maior alemão. O almirante
que veio com ele pediu uísque, pareceu descontraído e matou-se dias depois. Às
2h41 do dia 7, segunda-feira, a turma do avião viu quando assinaram a rendição.
Para espanto geral, fomos informados de que a notícia só poderia ser anunciada
às 15h do dia seguinte, quando os alemães já tivessem capitulado
cerimonialmente na frente russa. Voltamos para o avião e chegamos de manhã a
Paris.
Eu dei umas
voltas. Tinham-se passado mais de 12 horas, a guerra tinha acabado, mas isso
não podia ser contado. Pior: uma rádio alemã já havia transmitido a rendição de
Reims. Os censores mantiveram o embargo. Às 14h24 liguei para o escritório da
AP em Londres e passei a noticia: "A Alemanha rendeu-se
incondicionalmente". Pode ter sido a notícia do século.
Na primeira
hora, fui festejado. Em seguida o comando aliado cassou minha credencial e o
que era festa tornou-se recriminação. Colegas meus, reunidos em Paris,
condenaram-me por 52 votos contra quatro. Meu comportamento teria sido
"aético". Meus patrões pediram desculpas ao governo, chamaram-me de
volta a Nova York e suspenderam-me. Não me davam serviço e um dia depositaram
US$ 4 mil na minha conta, sem uma palavra. Era o sinal para que eu sumisse
dali. Arrumei um emprego na Califórnia e morri num acidente de carro em 1963,
aos 58 anos. Só quem me defendeu foi o A. J. Liebling, com um artigo intitulado
"A Capitulação da AP".
Meu chefe
chegou aqui pouco depois de mim e se esconde quando me vê. O general Eisenhower
já me pediu desculpas. Outro dia conversamos sobre o comportamento da imprensa
americana durante a invasão do Iraque e ele disse um palavrão, coisa que
raramente faz. Já o general Patton continua xingando a minha mãe, mas isso não
tem importância porque ele vive falando das mães dos outros. A Associated Press
levou 67 anos para se desculpar.
Até hoje tem
gente que propõe o meu nome para um Prêmio Pulitzer póstumo. Não sei se é boa
ideia. Ficarei satisfeito se for lembrado por qualquer repórter que corre atrás
da notícia em vez de prestar atenção no que lhe dizem os poderes da hora. No
entanto, como ninguém mais se lembra de mim, cuidado, notícia é coisa perigosa.
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