domingo, 24 de agosto de 2014

GETÚLIO – O espólio getulista

        O conteúdo nacionalista da carta-testamento foi imediatamente incorporado ao programa do PTB, o Partido Trabalhista Brasileiro. Em nota oficial, divulgada a 25 de agosto, a Comissão Executiva Nacional e a bancada federal do partido endossaram os “princípios consubstanciados na última carta do presidente Getúlio Vargas, que são: a) combate aos abusos do poder econômico; b) defesa do regime de liberdade social; c) luta pela libertação econômica do povo brasileiro”.
        O PSD, o Partido Social Democrático, colhe os frutos da sua estratégia de manter um certo distanciamento crítico, a famosa “omissão preventiva”, de um governo do qual fazia parte, mas pelo qual não se sentia prestigiado, porquanto cortejava a UDN. "Desde o momento em que teve de partilhar parte do governo com a UDN, o PSD já se sentiu lesado", declara Tancredo Neves, em depoimento para a História, citado por Lucia Hippolito no livro “De raposas e reformistas – PSD e a experiência democrática brasileira (1945-64)”. A própria postura de Getúlio estimulava a eventual omissão do PSD. Getúlio “jogava na prática com um comportamento apartidário e de deslegitimização das organizações políticas, advindo exatamente de seu descrédito nas instituições”, observa Lucia Hippolito no seu livro. Isso permitiu ao partido preservar seu papel de grande negociador político, justificando o chiste cunhado por Maria Victoria de Mesquita Benevides, ao descrever a correlação de forças entre as principais legendas de então: “A UDN esperneia, o PTB cresce, mas é o PSD que dá o tom.”
        O suicídio de Vargas e a sua carta-testamento marcam profundamente o próprio PCB, o Partido Comunista Brasileiro. Até então, os comunistas faziam críticas ácidas ao governo de Getúlio, acusado de se submeter aos interesses dos Estados Unidos e de recorrer à violência e ao terror contra o povo brasileiro. Na edição de 25 de agosto o jornal comunista Imprensa Popular acusou o imperialismo norte-americano de ser o responsável pela morte de Getúlio e o governo Café Filho de ser formado por “agentes furiosos dos monopólios de Wall Street”.

        O populismo de Getúlio Vargas sobreviveu ao suicídio do ex-presidente e aparentemente ao seu próprio colapso, cuja evidência seria o golpe militar de 1964, na interpretação de alguns cientistas políticos, sociólogos e historiadores. Em versões cada vez mais deterioradas, ele perdura nos tempos atuais, inclusive sob a forma do populismo obreiro. Ora ele emerge a pretexto da moralidade pública, cobrada naturalmente dos adversários, em rua de mão única; ora desponta no rastro de discursos messiânicos, próprios da prestidigitação política, que utiliza o eleitorado como massa de manobra, coopta mediante o fisiologismo e intimida a oposição mais recalcitrante valendo-se de expedientes torpes, que incluem a utilização nada republicana do aparelho estatal. Mas sempre sob o assistencialismo que fixa o homem na miséria, ao invés de dela libertá-lo, porque ao mantê-lo refém dos favores do Estado, faz deste o carcereiro da plena liberdade, para a qual é condição sine qua non o voto consciente. Sem o qual perdura o desafio que nos é posto – elites e massas são duas realidades concomitantes, mas que só se justificam como elites abertas e massas minimamente conscientes.

Um comentário :

Michele Lobo disse...

Genial.Acredito que não haverá história de presidente como a dele. Fantástica Biografia.