O gênio holandês
do futebol Johan Cruyff, morto ontem de câncer aos 68 anos, era muito mais que
um craque em campo. Na Copa do Mundo de 1978, na Argentina, ele se recusou a
representar seu país, em protesto contra a ditadura militar. “Como jogar
futebol tão perto de um centro de torturas?”, perguntou Cruyff na ocasião. Suas
palavras ressoam até hoje. A guerra suja promovida pelos militares argentinos
matou mais de 30 mil pessoas sem julgamento, torturou dezenas de milhares e
promoveu uma divisão profunda que perdura até hoje na sociedade.
Mas a Argentina,
assim como o Brasil, se transformou ao longo dos anos 1980, período em que a
América Latina viveu uma onda que expeliu governos militares e instaurou
regimes democráticos. “Não podemos esquecer o passado, mas, quando encontramos
a coragem de enfrentá-lo e de mudar esse passado, é aí que construímos um
futuro melhor”, afirmou ontem em Buenos Aires o presidente americano, Barack
Obama. Ele participou, com o presidente argentino, Maurício Macri, da cerimônia
que marcou os 40 anos do golpe militar (foto). Num gesto histórico, criticou a
própria ação dos Estados Unidos na ocasião. Macri repetiu o refrão consagrado:
“Nunca mais”.
A democracia não
é perfeita, todos sabemos. Ela não garante a solução rápida para todos os
problemas. Funciona com lentidão, está sujeita a hesitações, vacilos e a
frequentes crises políticas. Mas a alternativa é sempre pior. A alternativa é a
violência contra opiniões discordantes, é a brutalidade, é a imposição das
ideias pela força, é o fim do debate, é a censura, é a aniquilação de
adversários indesejados. Crises democráticas sempre são preferíveis à ruptura
institucional.
Trata-se de uma
lembrança essencial neste momento político tenso no Brasil, em que a presidente
mais impopular da história sofre um processo de impeachment no Congresso, em
que seu antecessor é investigado, sob a acusação de ter recebido favores
ilícitos de empreiteiras que desviaram recursos da Petrobras. A reação de Dilma
Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva aos processos tem sido afirmar que está em
andamento no país uma tentativa de “golpe” – palavra repetida esta semana
por Lula em comício e por Dilma em entrevista à imprensa estrangeira.
Não há nada,
rigorosamente nada, que tenha fugido ao roteiro democrático no andamento dos
processos contra Lula e Dilma. O impeachment segue no Congresso um roteiro
previsto na Constituição e referendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF),
depois de questionamentos de todas as partes. Decisões da Operação Lava Jato
vêm sendo contestadas com frequência em tribunais superiores. Nenhum setor do
aparelho de Estado tem agido ou lançado mão de violência sem o devido amparo
jurídico. Não há nada, rigorosamente nada, que configure uma tentativa de
golpe.
Se o juiz Sérgio
Moro errou ao liberar áudios das conversas entre Lula e Dilma, se a a Polícia
Federal se precipitou ao publicar indevidamente planilhas com o nome de
políticos, todos esses atos estão sujeitos a revisão. O plenário do STF julgará
as liminares dos ministros Gilmar Mendes, Teori Zavascki e Rosa Weber a
respeito do caso envolvendo Lula. O próprio Moro decidiu restabelecer o
sigilo sobre as planilhas que deveriam ter sido enviadas ao STF. Nada disso é
golpe. Trata-se do funcionamento normal e esperado das instituições numa democracia.
Quando há erros, eles são reparados, depois os responsáveis estão sujeitos às
sanções previstas em lei.
Nada é tão grave
para o amadurecimento político de uma nação quanto o abuso de algumas palavras.
É o caso de termos como “genocídio”, “totalitarismo”, “fascismo” – e também
“golpe”. Chamar de “golpe” a articulação política pelo impeachment, as
investigações da Operação Lava Jato ou as manifestações de protesto contra o
governo não é apenas um abuso. É um desrepeito à história. É uma afronta à
memória de todos aqueles que morreram ao enfrentar um golpe de verdade, dos que
combateram a ditadura, o assassinato e a tortura de presos políticos,
defenderam a liberdade de expressão, associação e manifestação. É um acinte,
enfim, àqueles que lutaram pela democracia – entre eles os próprios Dilma e
Lula.
Vivemos numa
democracia ainda jovem. Nossa Constituição ainda não tem 40 anos. Nossas
instituições são imperfeitas e falham com frequência. Mas é uma tranquilidade –
Dilma e Lula deveriam saber disso muito bem – poder contar com o devido
processo legal e o amplo direito de defesa. É uma tranquilidade poder viver sem
ter medo de expressar opiniões, quaisquer que elas sejam. O Poder Judiciário
pode errar, mas é independente. A imprensa pode errar, mas é livre. Os partidos
e movimentos sociais podem incomodar, mas têm direito de se manifestar.
Não, não haverá
golpe, por mais que Dilma e Lula insistam em posar de vítimas de uma
conspiração. Haverá apenas julgamento, e os culpados serão punidos. Dentro das regras
da democracia brasileira – ainda jovem, frequentemente imperfeita, mas sempre
essencial. Golpe, para repetir as palavras de Macri, nunca mais.
* Hélio
Gurovitz é formado em jornalismo e ciência da computação pela Universidade de
São Paulo, com pós-graduação em hipermídia pela Universidade de Westminster, em
Londres. O artigo foi
publicado nesta sexta-feira, 25, pelo G1, o portal da Globo.
Nenhum comentário :
Postar um comentário