Aurélio do Ó: morte quando ainda encontrava-se no vigor intelectual. |
Um homem de bem e do bem.
Para além de seus muitos méritos
profissionais, como físico e professor, isso é o mínimo que se pode dizer de
Aurélio Leal Alves do Ó, de cuja morte, que o colheu ainda na plenitude de seu
vigor intelectual, tomei conhecimento no último sábado, 13, em uma daquelas
notícias que você jamais gostaria de receber. Às voltas com problemas de saúde,
só agora estou em condições de fazer o doloroso registro.
Divergências pontuais à parte, e a despeito
do rompimento tácito, ocorrido publicamente - que a mim deprimiu, até pelo
motivo que lhe deu causa, com o agravante de que o imponderável da vida não nos
deu tempo de ao menos tentarmos remediar as sequelas da inesperada escaramuça -,
guardo de Aurélio a imagem construída na esteira de uma relação de 53 anos.
Aurélio foi, para mim, um caro amigo, um irmão por adoção, com o qual relacionei-me
desde os meus 12 anos, quando, nos idos de 1964 ele abrigou-se na casa da minha
família, para escapar da ira dos verdugos do golpe militar, afetuosamente
acolhido por meus pais, na extensão da amizade que o atou, ao longo da vida, ao
saudoso Luiz Octávio, um dos meus irmãos mais velhos, um transgressor por
excelência, que foi um dos mais refinados intelectuais de sua geração e cujo
nome se confunde com a história recente do teatro paraense, cuja rebeldia o
tornou um nome maldito pelos donos do poder. Como aos filhos, a ele era
facultado cumprimentar minha mãe com um beijo no rosto, algo que representava, para
os vitorianos padrões morais da época, uma concessão que traduzia um imenso
bem-querer, o que fez dele, por assim dizer, um filho adotivo. Sua amizade mais
estreita, é verdade, sempre foi com Luiz Octávio, com o qual compartilhou os
sonhos libertários da juventude e a quem sempre admirou pela inquietação
intelectual e pela comovente coragem moral. “Meu amigo” era o tratamento mútuo
entre ambos, mutuamente solidários e leais um com o outro, em uma cumplicidade
que só a amizade incondicional permite.
Um homem do sua época, que interiorizou as
angústias legadas pelos tempos sombrios sob os quais viveu, por algum tempo,
como tantos brasileiros, ele amargou o estigma da militância política da
juventude. Para ingressar na UFPA, a Universidade Federal do Pará, por exemplo,
precisou da intervenção enérgica do pai, “seu” Paulo, militar da Marinha, feita
à sua revelia, diga-se. Após submeter-se e ser aprovado em um concurso público da UFPA, Aurélio sofreu um
interdito proibitório do regime militar, determinado por razões ideológicas, que repetiu-se em uma segunda
oportunidade, por conta da pecha de comunista que lhe era atribuída pela ditadura militar. Foi quando então entrou em cena “seu” Paulo, cujas idiossincrasias
determinadas pelos rigores da formação castrense, com ênfase para o respeito a
hierarquia, não o impediram de se insurgir contra a odiosa discriminação que
novamente se abatia sobre o filho. Sem dar conhecimento prévio do seu ato a
ninguém, movido pelo sentimento de indignação de um pai diante da injustiça
sofrida pelo rebento, em carta a um dos poderosos da hora ele protestou contra
o veto recorrente, porque, na sua visão, remetia a “um erro de juventude”,
diluído no passado e pelo qual o filho já fora suficientemente penalizado. Pelo
próprio Aurélio tomei conhecimento da existência de cópia da carta, porém a ela
jamais tive acesso, respeitando um desejo dele, em seu peculiar apreço pela
privacidade. A inconfidência, nessa altura, parece-me justificável, por
ilustrar a atmosfera sufocante da época, sob a qual Aurélio pavimentou sua trajetória.
Sagaz, com um gosto literário e musical
apurado, e sempre bem informado, por conta de uma vasta teia de relações, Aurélio
surpreendia pelo perfil humanista, apesar de ser um profissional da área de
ciências exatas, na qual navegou com reconhecida competência. Esse perfil
intelectualmente eclético sempre fez dele um interlocutor extremamente
prazeroso, inclusive pela irreverência, que brotava sem peias, na intimidade,
particularmente quando estimulada pelo uísque, que saboreava com inocultável prazer. Como
amigo, notabilizou-se pela lealdade, sem abdicar da franqueza, às vezes rude,
inclusive quando falava de si próprio, privilégio que reservava para poucos. Jamais
negou solidariedade a um amigo, como eu próprio pude constatar, quando ele,
recém-separado, convidou-me para morar com ele, em seu apartamento, tão logo
soube que eu também separava-me, sempre um momento delicado para qualquer um. Tratava-se
da prazerosa rua de mão dupla, própria das amizades sinceras, sedimentadas
sobretudo na eventual adversidade, como evidenciou na sua relação com Luiz
Octávio.
Professor de sucessivas gerações, na UFPA e
na rede estadual de ensino, com passagem marcante no histórico CEPC, o Colégio
Estadual “Paes de Carvalho”, como físico Aurélio atuou no Hospital Ophir
Loyola, acompanhando a árdua batalha pela sobrevida dos pacientes vítimas de
câncer. Impossível para alguém, como ele, manter-se insensível ao drama humano
dos pacientes e seus familiares, o que explica a atmosfera de angústia na qual
costumava submergir. Comovia sua preocupação com o funcionamento do acelerador
linear, e a dedicação com a qual continuava atuando, mesmo após a
aposentadoria, tanto no “Ophir Loyola” como no Hospital Regional de Santarém.
Os anos de estreita convivência com a ideia de finitude da vida não conseguiram
embrutecê-lo, como permitia entrever ao falar de suas expectativas em relação ao
Hospital Regional de Santarém. De resto, não se deixar contaminar pelos malfeitos que vicejam na UFPA é um atestado da sua idoneidade profissional.
Nesses momentos, como na lealdade aos
amigos, emergia cristalino o homem de bem e do bem que foi Aurélio, com uma
generosidade comovente, independentemente do seu mapa de crenças, que passou a rever nos últimos anos, o que acabou por nos colocar em rota de colisão, menos pelas discordâncias e mais pelo tom ácido que incorporou diante do contraditório, o que não elide suas inquestionáveis qualidades como ser humano. Virtudes que fizeram dele uma pessoa admirável, porque
honrado e despojado da empáfia daqueles que se pretendem aspirantes a Deus. Que
melhor legado pode almejar alguém deixar para os que ficam?
Como a vida não tem rascunho, diante do irremediável
da morte física resta, como de sempre, o alento de que viver para quem fica não
é morrer.
MISSA
DE 7º DIA – A missa de sétimo dia de falecimento de Aurélio Leal Alves do Ó
será nesta sexta-feira, 19, às 19h30, na Catedral da Sé.
2 comentários :
É preciso amar as pessoas como se nada houvesse no dia seguinte. É preciso desarmar-se para amar em paz.
Eu tinha um grande apreço pelo Dr. Aurélio. Ainda tinha a esperança de reencontrá-lo para trocarmos um dedo de prosa e saborear um bom uísque. Sentirei muita falta, afinal de contas ele fez parte da minha infância. Eu o admirava muito ! Ele ainda tinha muito a nos ensinar! Eternas Saudades
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