Parte do acervo do extinto SNI, abrigado no Arquivo Nacional de Brasília. |
Sobre as
anotações do SNI a respeito de Ronaldo Passarinho Pinto de Souza, hoje
disponibilizadas pelo Arquivo Nacional de Brasília, existem indícios de
lacunas, previsíveis diante da razia feita em 1981, no governo do
general-presidente João Figueiredo, quando mais de 19 mil documentos foram
destruídos, conforme revelou a Folha de S. Paulo em 2012. “Do
material destruído, o SNI guardou apenas um resumo, de uma ou duas linhas, que
ajuda a entender o que foi eliminado”, assinala o jornalista Rubens Valente, que
assina a primeira das duas matérias publicadas pela Folha a
respeito da destruição de parte do acervo do SNI. A primeira matéria é de 2 de
julho de 2012, uma segunda-feira; a segunda, de 3 de julho de 2012, uma
terça-feira.
Seguem as
transcrições, na íntegra, das reportagens publicadas pela Folha de S.
Paulo:
FOLHA
DE S. PAULO – Segunda-feira, 2 de julho de 2012
Ditadura destruiu mais de 19 mil documentos
secretos
Ordens de
destruição, agora liberadas, resumem papéis eliminados em 1981
Material
ceifado era do extinto SNI; alguns relatórios tratavam de Brizola, dom Helder e
Vinicius de Moraes
RUBENS
VALENTE
DE BRASÍLIA
Guardado em
sigilo por mais de três décadas, um conjunto de 40 relatórios encadernados
detalha a destruição de aproximadamente 19,4 mil documentos secretos produzidos
ao longo da ditadura militar (1964-1985) pelo extinto SNI (Serviço Nacional de
Informações).
As ordens de
destruição, agora liberadas à consulta pelo Arquivo Nacional de Brasília,
partiram do comando do SNI e foram cumpridas no segundo semestre de 1981, no
governo de João Baptista Figueiredo (1979-1985).
Do material
destruído, o SNI guardou apenas um resumo, de uma ou duas linhas, que ajuda a
entender o que foi eliminado.
Entre os
documentos, estavam relatórios sobre personalidades famosas, como o
ex-governador do Rio Leonel Brizola (1922-2004), o arcebispo católico dom
Helder Câmara (1909-1999), o poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980)
e o poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999).
Alguns
papéis podiam causar incômodo aos militares, como um relatório intitulado
“Tráfico de Influência de Parente do Presidente da República”. O material era
relacionado ao ex-presidente Emílio Garrastazu Médici, que governou de 1969 a
1974.
Outros
documentos destruídos descreviam supostas “contas bancárias no exterior” do
ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros ou a “infiltração de subversivos
no Banco do Brasil”.
Boa parte
dos documentos eliminados trata de pessoas mortas até 1981. A análise dos
registros sugere que o SNI procurava se livrar de todos os dados de pessoas
mortas, talvez por considerar que elas não eram mais de importância para as
atividades de vigilância da ditadura.
LEGISLAÇÃO
Algumas das
ordens de destruição foram assinadas pelo general Newton Cruz, que foi chefe da
agência central do SNI entre 1978 e 1983.
Em
entrevista por telefone realizada na semana passada, Cruz, que está com 87
anos, disse que não se recorda de detalhes das destruições. Mas afirmou ter
“cumprido a lei da época”.
A legislação
em vigor nos anos 80 abria amplo espaço para eliminações indiscriminadas de
documentos. Baixado durante a ditadura, o Regulamento para Salvaguarda de
Assuntos Sigilosos, de 1967, estabelecia que materiais sigilosos poderiam ser
destruídos, mas não exigia motivos objetivos.
Bastava que
uma equipe de três militares decidisse que os papéis eram inúteis como dado de
inteligência militar.
A prática da
destruição de papéis sigilosos foi adotada por outros órgãos estatais.
Como a Folha revelou
em 2008, pelo menos 39 relatórios secretos do Exército e do extinto Emfa
(Estado-Maior das Forças Armadas) foram incinerados pela ditadura entre o final
dos anos 60 e o início dos 70.
Segundo
quatro “termos de destruição” arquivados pelo CSN (Conselho de Segurança
Nacional), órgão de assessoria direta do presidente da República, foram
queimados documentos nos anos de 1969 e 1972.
FOLHA
DE S. PAULO – Terça-feira, 3 de julho de 2012
Cinzas do regime
Burocracia
do SNI registrou metodicamente a destruição de milhares de documentos,
tentativa canhestra de apagar rastos da estupidez ditatorial
Ficou famosa
uma frase do idealizador do antigo SNI (Serviço Nacional de Informações),
general Golbery do Couto e Silva: “Criei um monstro”, declarou certo dia, mais
uma neutra constatação do que um genuíno arrependimento.
O monstro,
ao que tudo indica, já se devorava a si mesmo antes até de extintas suas
funções de principal órgão de espionagem na ditadura militar (1964-1985).
Reportagem na Folha de ontem mostra que mais de 19 mil
documentos sigilosos do SNI foram destruídos, durante o segundo semestre de
1981.
Em vários
casos, a ordem para a aniquilação do material secreto foi dada pelo chefe do
SNI na época, general Newton Cruz. “Foi tudo de acordo com a lei da época”,
assevera Cruz, hoje com 87 anos.
Arquivos de
valor histórico, como relatórios sobre as supostas atividades subversivas dos
poetas João Cabral de Melo Neto e Vinicius de Moraes, não foram as únicas baixas
nessa investida oficial contra a própria documentação.
Papéis
capazes de ferir suscetibilidades e reputações mais frágeis também
desapareceram. É o caso de um dossiê, intitulado de forma algo indiscreta-
“Tráfico de Influência de Parente do Presidente da República”. Fazia-se
referência a alguém do círculo familiar de Emílio Garrastazu Médici, presidente
entre 1969 e 1974.
O interesse
principal das autoridades na eliminação dos arquivos parece ter sido não tanto
o de proteger os incriminados, e sim os próprios incriminadores. O zelo
investigativo sobre poetas ou figuras de oposição tenderia, com o passar do
tempo, a mostrar o ridículo e a estreiteza ideológica dos chamados “serviços de
inteligência”.
Obliterou-se
o máximo possível (ainda que mantendo registros de cada documento destruído).
Sinal, sem dúvida, de um esforço de autoproteção. Sinal, também, da
irracionalidade de todo o projeto. Como em qualquer regime autoritário, a
máquina das suspeitas e das denúncias não tinha como não crescer exponencialmente.
A limpeza
dos arquivos pode ser atribuída tanto à necessidade de ocultar malfeitorias
quanto a questões logísticas: seria preciso reservar espaço (e tempo de
análise) para os novos dossiês, as novas suspeitas, as novas ilegalidades.
A burocracia
tem suas leis; têm suas leis, também, a opressão política e a estupidez
ditatorial. Vê-se, não pela primeira vez, como é difícil sondá-las plenamente.
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