sábado, 9 de abril de 2016

HISTÓRIA – Arquivo destruído

Parte do acervo do extinto SNI, abrigado no Arquivo Nacional de Brasília.

Sobre as anotações do SNI a respeito de Ronaldo Passarinho Pinto de Souza, hoje disponibilizadas pelo Arquivo Nacional de Brasília, existem indícios de lacunas, previsíveis diante da razia feita em 1981, no governo do general-presidente João Figueiredo, quando mais de 19 mil documentos foram destruídos, conforme revelou a Folha de S. Paulo em 2012. “Do material destruído, o SNI guardou apenas um resumo, de uma ou duas linhas, que ajuda a entender o que foi eliminado”, assinala o jornalista Rubens Valente, que assina a primeira das duas matérias publicadas pela Folha a respeito da destruição de parte do acervo do SNI. A primeira matéria é de 2 de julho de 2012, uma segunda-feira; a segunda, de 3 de julho de 2012, uma terça-feira.
Seguem as transcrições, na íntegra, das reportagens publicadas pela Folha de S. Paulo:

FOLHA DE S. PAULO – Segunda-feira, 2 de julho de 2012

Ditadura destruiu mais de 19 mil documentos secretos

Ordens de destruição, agora liberadas, resumem papéis eliminados em 1981
Material ceifado era do extinto SNI; alguns relatórios tratavam de Brizola, dom Helder e Vinicius de Moraes

RUBENS VALENTE

DE BRASÍLIA

Guardado em sigilo por mais de três décadas, um conjunto de 40 relatórios encadernados detalha a destruição de aproximadamente 19,4 mil documentos secretos produzidos ao longo da ditadura militar (1964-1985) pelo extinto SNI (Serviço Nacional de Informações).
As ordens de destruição, agora liberadas à consulta pelo Arquivo Nacional de Brasília, partiram do comando do SNI e foram cumpridas no segundo semestre de 1981, no governo de João Baptista Figueiredo (1979-1985).
Do material destruído, o SNI guardou apenas um resumo, de uma ou duas linhas, que ajuda a entender o que foi eliminado.
Entre os documentos, estavam relatórios sobre personalidades famosas, como o ex-governador do Rio Leonel Brizola (1922-2004), o arcebispo católico dom Helder Câmara (1909-1999), o poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980) e o poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999).
Alguns papéis podiam causar incômodo aos militares, como um relatório intitulado “Tráfico de Influência de Parente do Presidente da República”. O material era relacionado ao ex-presidente Emílio Garrastazu Médici, que governou de 1969 a 1974.
Outros documentos destruídos descreviam supostas “contas bancárias no exterior” do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros ou a “infiltração de subversivos no Banco do Brasil”.
Boa parte dos documentos eliminados trata de pessoas mortas até 1981. A análise dos registros sugere que o SNI procurava se livrar de todos os dados de pessoas mortas, talvez por considerar que elas não eram mais de importância para as atividades de vigilância da ditadura.

LEGISLAÇÃO

Algumas das ordens de destruição foram assinadas pelo general Newton Cruz, que foi chefe da agência central do SNI entre 1978 e 1983.
Em entrevista por telefone realizada na semana passada, Cruz, que está com 87 anos, disse que não se recorda de detalhes das destruições. Mas afirmou ter “cumprido a lei da época”.
A legislação em vigor nos anos 80 abria amplo espaço para eliminações indiscriminadas de documentos. Baixado durante a ditadura, o Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos, de 1967, estabelecia que materiais sigilosos poderiam ser destruídos, mas não exigia motivos objetivos.
Bastava que uma equipe de três militares decidisse que os papéis eram inúteis como dado de inteligência militar.
A prática da destruição de papéis sigilosos foi adotada por outros órgãos estatais.
Como a Folha revelou em 2008, pelo menos 39 relatórios secretos do Exército e do extinto Emfa (Estado-Maior das Forças Armadas) foram incinerados pela ditadura entre o final dos anos 60 e o início dos 70.
Segundo quatro “termos de destruição” arquivados pelo CSN (Conselho de Segurança Nacional), órgão de assessoria direta do presidente da República, foram queimados documentos nos anos de 1969 e 1972.

FOLHA DE S. PAULO – Terça-feira, 3 de julho de 2012

Cinzas do regime

Burocracia do SNI registrou metodicamente a destruição de milhares de documentos, tentativa canhestra de apagar rastos da estupidez ditatorial

Ficou famosa uma frase do idealizador do antigo SNI (Serviço Nacional de Informações), general Golbery do Couto e Silva: “Criei um monstro”, declarou certo dia, mais uma neutra constatação do que um genuíno arrependimento.
O monstro, ao que tudo indica, já se devorava a si mesmo antes até de extintas suas funções de principal órgão de espionagem na ditadura militar (1964-1985). Reportagem na Folha de ontem mostra que mais de 19 mil documentos sigilosos do SNI foram destruídos, durante o segundo semestre de 1981.
Em vários casos, a ordem para a aniquilação do material secreto foi dada pelo chefe do SNI na época, general Newton Cruz. “Foi tudo de acordo com a lei da época”, assevera Cruz, hoje com 87 anos.
Arquivos de valor histórico, como relatórios sobre as supostas atividades subversivas dos poetas João Cabral de Melo Neto e Vinicius de Moraes, não foram as únicas baixas nessa investida oficial contra a própria documentação.
Papéis capazes de ferir suscetibilidades e reputações mais frágeis também desapareceram. É o caso de um dossiê, intitulado de forma algo indiscreta- “Tráfico de Influência de Parente do Presidente da República”. Fazia-se referência a alguém do círculo familiar de Emílio Garrastazu Médici, presidente entre 1969 e 1974.
O interesse principal das autoridades na eliminação dos arquivos parece ter sido não tanto o de proteger os incriminados, e sim os próprios incriminadores. O zelo investigativo sobre poetas ou figuras de oposição tenderia, com o passar do tempo, a mostrar o ridículo e a estreiteza ideológica dos chamados “serviços de inteligência”.
Obliterou-se o máximo possível (ainda que mantendo registros de cada documento destruído). Sinal, sem dúvida, de um esforço de autoproteção. Sinal, também, da irracionalidade de todo o projeto. Como em qualquer regime autoritário, a máquina das suspeitas e das denúncias não tinha como não crescer exponencialmente.
A limpeza dos arquivos pode ser atribuída tanto à necessidade de ocultar malfeitorias quanto a questões logísticas: seria preciso reservar espaço (e tempo de análise) para os novos dossiês, as novas suspeitas, as novas ilegalidades.

A burocracia tem suas leis; têm suas leis, também, a opressão política e a estupidez ditatorial. Vê-se, não pela primeira vez, como é difícil sondá-las plenamente.

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