quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

MEMORIALISMO – O relato de Carlos Mendes

        Com a verve que lhe é própria, o jornalista Carlos Mendes (foto) resgata o embate público entre Inri Cristo, ou Inri de Indaial, com Fernando Lúcio Miranda, o Fernando Arara. Um relato que resgata uma Belém que ainda nos fazia rir, mesmo diante de “uma guerra de ofensas que quase resvala para as chamadas vias de fato”, conforme relata o jornalista no texto abaixo. Um texto que Mendes define como uma “quase-ex-crônica”.

Inri Cristo X Fernando Arara: ou a luta de Deus e o diabo na terra do açaí, que eu testemunhei ao lado do Raul Thadeu

        Lendo no Diário do Pará de hoje, a entrevista do folclórico Inri de Indaial, ou Inri Cristo, como queiram, deparei-me com algumas considerações do entrevistado que não revelam tudo o que aconteceu durante a curta e agitada passagem dele pela cidade das Mangueiras, em fevereiro de 1982. Principalmente a escaramuça que houve na Praça Dom Pedro II, onde Inri e Fernando Lúcio Miranda, o Fernando Arara, travaram uma guerra de ofensas que quase resvala para as chamadas vias de fato.
        Deixa eu contar essa estória aqui por mim testemunhada. Eu era frequentador da casa de Fernando Arara, alí na Frei Gil de Vila Nova, atrás do antigo Consulado Americano, na Praça da República, onde ele morava com a mãe, a escritora Lindanor Celina (quando ela vinha passar férias em Belém, porque morava e lecionava literatura portuguesa em Paris). No dia em que o Fernando Arara, mente tão genial e privilegiada quanto louca (se é que as duas coisas não se fundem e completam), soube que o Inri Cristo estava em Belém e era vedete do programa do Eloy Santos na então TV Guajará, da família Lopo/Conceição Castro, decidiu encarar o "enviado" de Deus e tomar satisfações. Fernando Arara era um provocador nato, que morreu tragicamente, esmagado por uma kombi desgovernada da Sefa, naquela mangueira bem na esquina da D. Pedro com a Jerônimo Pimentel, em frente ao Hospital Geral de Belém (HGB).
        Era final de fevereiro e as entrevistas do Inri Cristo no programa do Eloy tiveram uma repercussão estrondosa em toda Belém. Com aquela cara de Cristo ocidentalizado, o Inri falava com convicção que era o próprio filho de Deus e dizia curar cegos, cancerosos e deficientes físicos. Multidões iam para a porta do edifício Manoel Pinto da Silva, onde no penúltimo andar, o 25º, funcionava a TV Guajará canal 4, fechando literalmente o trânsito na confluência da avenida Presidente Vargas com as avenidas Nazaré e Assis de Vasconcelos. Uma loucura total.
        Na noite anterior, durante um dos quatro ou cinco programas com a participação do Inri, o próprio “salvador” anunciou que na manhã do dia seguinte iria “libertar” o povo da idolatria e do culto às imagens de santos. Ousadia tentar isso na terra de Nossa Senhora de Nazaré e onde também proliferavam centenas de terreiros de Umbanda. Dito e feito. Na manhã do dia 28, a Praça Dom Pedro II estava superlotada. Por baixo, havia umas dez mil pessoas. Só o general Barata havia conseguido colocar tanta gente na praça em frente ao Palácio Lauro Sodré, onde funcionava a sede do governo papachibé.
        No centro da praça, trepado ao lado da estátua de Dom Pedro, a figura do Inri se destacava. Ele pregava para a multidão, largando o pau na Igreja Católica. Ao lado do amigo Raul Thadeu da Ponte Souza, jornalista dos bons, já falecido, eu anotava tudo o que o Inri Cristo falava. Entre ataques às riquezas dos templos católicos e a demonização de bispos e padres, sob aplausos da turba extasiada, ele preparava-se para caminhar com seus discípulos rumo à Catedral da Sé, bem pertinho, para “cumprir a vontade de meu pai”, como dizia à multidão, quando eis que aparece o Fernando Arara, aos gritos, chamando o Inri de impostor.
        Fernando Arara, quem o conheceu sabe disso, era uma figura quase mítica. Inteligentíssimo, estudante de medicina, sabia de cor todas as músicas de Bob Dylan. Sempre com um violão nas mãos, costumava brindar com Dylan a plateia de intelectuais, músicos, atores, e vagabundos metidos a hippies que frequentavam a escadinha do Teatro da Paz. Barbudo, cara de doido, Fernando Arara tinha a aparência do Ian Anderson, o flautista genial da banda de rock irlandesa Jethro Tull. Imaginem agora o Fernando Arara, um ateu fervoroso, frente a frente com Inri Cristo, confrontando-o em uma praça diante de uma multidão de fanáticos.
        - “Impostor, farsante, canalha”, berrava Fernando Arara para Inri Cristo. E completava: “tu não és Cristo porra nenhuma. Tu és uma fraude”.
        Também furioso, com os olhos esbugalhados, Inri Cristo devolvia as ofensas: “Satanás, Belzebu. Meu pai me avisou que tu virias. Eu já te esperava, demônio. Tu estás a serviço dessa igreja cujo povo vou libertar. Vai embora, demônio”.
        Fernando Arara só na avançou para cima do Inri Cristo para comer o fígado dele, porque o Raul Thadeu agarrou o Fernando Arara e o afastou no local. Mesmo a uns 20 metros do Inri Cristo, o Fernando Arara não parava de gritar: “estelionatário da fé, vigarista de merda, impostor”. E o Inri Cristo, rebatendo: “maldito satanás, vai-te daqui”. Eu quase estava morrendo de rir. O Raul Thadeu olhava para mim e não dizia nada, só fazia coçar os bigodes a la Salvador Dali.
        De repente, não mais que de repente, Inri Cristo gritou para a multidão a palavra de ordem: “expulsem vocês mesmos o Diabo daqui”. Ordem dada, ordem cumprida. Ao que ver que se continuasse alí, naquela troca de gentilezas com o missionário do divino, iria virar churrasquinho de gato na praça, Fernando Arara botou sebo nas canelas e saiu de pinote, no rumo da avenida Portugal, aos gritos de “pega, pega”. Felizmente, ninguém o pegou.
        Rindo, com ar de satisfeito, Inri Cristo, ao ver a tarefa cumprida, sentenciou: “agora que o demônio foi embora, vamos fazer o que meu pai mandou”. E foram todos para a Igreja da Sé, invadida em segundos . Sob os olhares atônitos do arcebispo dom Alberto Ramos, imagens de santos foram quebradas e o próprio arcebispo tachado de vendilhão.
        O resto vocês já sabem. Inri Cristo ficou quinze dias no Presídio “São José”, na Praça Amazonas. Fui visitá-lo algumas vezes, como jornalista. E anotei coisas que, outro dia, quando tiver tempo, contarei pra vocês.
        Tenham todos um bom Natal.

16 comentários :

Anônimo disse...

O Carlos Mendes é uma lenda viva do nosso jornalismo. Tem um humor como poucos para escrever coisas como estas que acabo de ler e rir muito, assim como escreve suas reportagens investigativas. Congratulações ao Carlos Mendes e a você, Augusto Barata, por resgatar relatos como esses de uma Belém cada vez mais sisuda e mal humorada.

César Costa

Anônimo disse...

Quem prendeu o Inri, foi o delegado Rafael Bezerra, que na época era comissário de policia.

Anônimo disse...

E ainda tem gente que acredita nesse maluco. Conta o resto Carlos.

Anônimo disse...

Uma vez cruzei no Bengola com umas figuras que estavam presas, na época que o Inri foi encarcerado, entre eles o Carcará, que me falou que mandou ver no catarinense. Será que o Inri ainda se lembra do "acocho" do Carcará, no São José ???

Anônimo disse...

Que maravilha!!! Grandes. Carlos Mendes, Barata... e cse abriu uma janela na minha memória e ali apareceram com todas as cores, o Fernando Arara, e todos os loucos de todas as tribos, as escadarias do Teatro da Paz, o sanduiche de filé do Bar do Parque...o guaraná Garoto... Naquela época eu não queria ficar só.
Um bom 2013 Barata, com 2013 possibilidades. Que algo aconteça na cultura da cidade, com essa mudança. Tomara que não se abram pequenos sorrisos no canto dos lábios, somente quando se lembra do passado, mas, por alegrias de um possível agora.
Cacá Carvalho.
(AH. E que não seja só na Cultura, claro. Pois Belém está sucateada em tudo... Mas, algumas áreas da Cultura ... égua maninho... levando surra de fio elétrico há anos!)

Anônimo disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk. que máximo! me acabei de rir: tirem esse demonio daqui! ordem dada ordem cumprida" kkkkkkkkkkkkk como queria ter visto essa cena! kkkkkkkkkkkk.Conta mais, tempo bom ,esse viu?

Anônimo disse...

O INRI, que nunca foi tolo, deve ter servido de inspiração para outros "INRIS" mais sofisticados, como o Edir Macedo e agora o Valdemiro Santiago.

Anônimo disse...

Salvaste minha semana Carlos Mendes com esse caso contado. Eu e minha esposa rimos muito. O Fernando Arara aprontou muitas na city, era também uma figura folclórica. Perguntem pro Elias, do Bar do Parque quantas o Arara fez na Praça da República. Belém perdeu uma figura ímpar. O Inri veio se fartar por aqui. Mais um maluco no pedaço.

Haroldo e Suelen

Francisco Sidou disse...

O Carlos Mendes, com seu delicioso relato do episódio Inry x Fernando Arara, resgata a memória de uma época que o poeta chamou de "a gostosa Belém de outrora". Época em que não havia essa corrida desesperada em busca do "ouro de tolo" e as pessoas ainda se cumprimentavam nas ruas, nos elevadores e ainda socorriam o semelhante caído na via pública e ainda davam lugar no ônibus para idosos e gestantes. Com sua verve de fino humor, o Mendes fica a nos dever outros relatos, quem sabe reunidos em livro de "ex-quase crônicas" de uma Belém que se foi juntamente com seus quintais e casas avarandadas.

Anônimo disse...

Faço um pedido ao Carlos Mendes, para ele contar mais coisas sobre a prisão do Inri e sua estadia no presídio São José. Gostaria de saber se o Inri foi currado pelos presos como foi dito à época por toda Belém. Não sei se isso é verdadeiro ou apenas boatos.

Anônimo disse...

Conta mais sobre o Inri, conta. Tá muito gostoso esse teu texto.

Anônimo disse...

Carlos....o Inri também andou na Maramabaia...e "pregou" na sede do São Joaquim. Sabes disso?

Anônimo disse...

jesusmaria, será que o "meeeuuupaaaiiii" deixou o Carcará passar o sal no Inri dentro do Casarão da praça Amazonas? Que blasfêmia!

Anônimo disse...

Égua, eu tô pregado!

Anônimo disse...

Esse era o FERNANDO arara que conheci, irmão do Claudio, do Henrique e filho da Dona Lindanor, que à época vivia com o Seu Machado, e ainda morava em belém escrevendo la no SITIO ITAIARA na estrada de Icoraci, nos fins de semana, hoje projeto de um CARREFOUR !

Unknown disse...

Senhor jornalista:
Carlos Mendes.
Gostaria muito de saber onde está sepultado o corpo do meu saudoso pai
Fernando Arara?
Por isso usei este espaço.
Abraços!
Celina Sena.